quarta-feira, 5 de maio de 2010

Capítulo 2


Susan olhou para ele, incrédula. O mundo girando em sua mão... Ínfimo e imprevisível. Tinha diante de si a expressividade no olhar, o contraste entre ironia e enigma do sorriso que a inebriava, a austeridade contrapondo-se a uma feição amável, uma beleza mais viva... Mas nada descobrira sobre ele apenas observando. E o que tinha dele antes? Igualmente insignificante. Ele era mais intenso do que sua memória lhe contava, disso ela sabia. Mas a pergunta não calava: o que fazia ali? Permanecer inerte não seria a melhor escolha, precisava tomar uma atitude. Levantou-se da cadeira onde aguardava impacientemente e sem descanso e parou à sua frente encarando-o com doçura:

- Ciao! Come stai?

- Do you speak English? – Roubou dela o sorriso que o deixava êxtase, sem saber que provocava nela o mesmo efeito.

- Ya! Baby! – Foi a vez de ela lhe fazer sorrir, acho que nem tanto pelo humor. – Susan Hirst. O prazer é todo meu. – Estendeu-lhe a mão.

- John McGray, a seu dispor. – Segurou sua mão e beijou-a com delicadeza, enquanto a encarava sedutoramente.

- Encantada. – Acariciou, suavemente, a mão dele e a soltou, ainda o encarando com os olhos semi-cerrados. E se fez o silêncio... Por quanto tempo? O momento seguinte à eternidade levava à dúvida. Diante da circunstância, tanto o que dizer, nada o que falar, já não se encaravam. Susan adoraria saber o que se passava na mente dele. O que pensava e sentia, como via o mundo. Certamente se surpreenderia ao se descobrir em cada um desses itens. Mas se tivesse acesso à consciência de John, neste momento, precisaria reviver Milão. A riqueza de detalhes vívida em sua memória, o vento cortando o rosto, a agonia e a incerteza de minutos antes do acidente, o alívio por estar viva... Muito mais bela e atraente...

Mergulhada em pensamentos, perguntava-se se cometeria o mesmo erro, vendo-o ir sem ao menos tentar conhecê-lo. O toque da mão dele, como adorara senti-lo novamente... O olhar rico de significados, que ela adoraria desvendar. No entanto, tinha consciência de que só conseguiria algo arriscando. Sem mais hesitar, perguntou:

- De passagem em Cambridge? – Era essa a pergunta que ele esperava escutar.

- Na verdade vim pra estudar. Faço intercâmbio universitário. – Respondeu solícito.

- Mesmo? – Então ele veio para estudar... Interessada, prosseguiu. – Desculpe perguntar, que curso?

- Ciência da computação. – Respondeu, prontamente, a mais essa pergunta.

- Nossa, que maravilha! Ciência da computação é um curso muito interessante. – A sinceridade da resposta o fez sorrir e a fez corar. – Precisa se dedicar.

- Sim. É um curso bastante denso. E você? Faz faculdade?

- Sim.

- De quê? – Era sua vez de arriscar.

- Línguas antigas e filologia. – Respondeu orgulhosa do que fazia.

- Filologia?! – Não, ela não era uma mulher qualquer. Surpreso, prosseguiu. – É um curso muito denso, dialoga com uma série de outras áreas, como história, por exemplo. Parabéns! Pretende ser pesquisadora?

- Sim. Estou sempre metida em encrenca, na Universidade. – O fez rir. – Sério, participo de alguns grupos de pesquisa, gente curiosa, na verdade. Mas um dia pretendo trazer contribuições para a filologia. Ela acabou sendo negligenciada por conta de novos estudos e perspectivas que sugiram, mas é uma área que tem muitos pesquisadores sérios envolvidos. – de uma pausa e seguiu adiante. – Tecnologia da informação também é uma área que cresce, tem muita pesquisa em desenvolvimento. È muito rica. Você já trabalha na área?

- Profissionalmente, não. Faço parte de um grupo de pesquisa da Universidade de Nova York.

- Jura? – Atraente, intenso e estudioso. Não poderia ser melhor. Riu de si, mas que mal havia em unir o inútil ao mais agradável ainda? Afinal, pensar não ofende.

- Sim. Desenvolvemos softwares para segurança. Ganhei uma bolsa para estudar dois anos em Cambridge. Vou cursar algumas disciplinas da faculdade e participar do grupo de iniciação científica daqui. .Quem sabe não volto pra fazer o mestrado?

... A atração intelectual era incontrolável. Ela tinha que conhecê-lo a fundo. Já nem prestava atenção no que ele dizia. Mas aos lábios ela estava bem atenta... Pouco a pouco um John mais amável e atencioso se revelava. A combinação dos elementos ironia, austeridade e carisma compunham um traço de personalidade bastante significativo. É... O reencontro foi menos idealizado do que imaginava. Melhor assim, quem sabe uma amizade mais sólida se construiria, ou até mesmo um relacionamento? Cedo para pensar nisso, mas quem sabe? Antes imersa em pensamentos, agora foi alertada para algo que, entretida pela conversa, havia se esquecido.

- Durante a viagem eu vim lendo um artigo, muito bem redigido, de um pesquisador daqui... – Isso a fez lembrar de que o estudante que esperava não chegou. Será que acontecera algo?

-... E é isso, por enquanto tô só na expectativa.

- Bem, tenho certeza de que você vai curtir a Universidade. John, poderia me dizer que horas são?

- 18h47min.

- Nossa! Já?! Gente, a hora voou. É que estou esperando um rapaz que, por coincidência, ta vindo pra fazer intercâmbio, mas está há horas atrasado.

- Na verdade estou há horas esperando você me levar pra casa. – Com o sorriso irônico e a feição divertida, ele revelou.

Susan não conseguiu conter a gargalhada. Há horas conversando com ele e não pensou na possibilidade de... O imprevisível não poderia ser mais óbvio. – Cara, como assim? – E ria mais e mais. – É que eu achei que nunca nos encontraríamos. Pensei que você fosse italiano. – concluiu com um sorriso inocente.

- É que talvez você me achasse mais interessante se eu fosse italiano... –- Ou não... Toda exceção tem suas regras.

- Adoraria quebrá-las.

- Eu as reconstruiria, com toda certeza... Tão improvável te reencontrar, que levá-lo para casa é mais que uma honra. Não esperava por isso. É só! – Desnecessário se armar, e ele sabia bem do que ela falava. – Imagino que queira descansar. Deixa eu te ajudar – Pegou uma das malas, sem olhá-lo. Mas se antes tinha a expressão brava, agora seu semblante começava a desanuviar. Aquela sensação ela conhecia bem... O toque da mão macia que a impediu de erguer a mala tornou possível um sorriso de contentamento que foi retribuído na mesma medida.

- Poderia levar o violão? – Inevitável não correr os olhos pelo vestido. Mordeu o lábio inferior e sorriu. – É mais leve. – Piscou pra ela.

- Claro! – Assentiu, sem jeito. Pegou o estojo que continha o instrumento e vestiu a alça, acomodando-o em suas costas. – Não quer que eu leve a mochila?

- Não, pode deixar que eu levo.

E dessa maneira foram caminhando lado a lado, em silêncio, pelo aeroporto até encontrarem o portão de saída. A caminhada breve não tinha fim. Cada um seguia uma viagem diferente, mas não menos tortuosa. E agora? Fingir que nada aconteceu? Frente a frente com a mulher que salvara sua vida, natural a inquietude que o torturava. Como queria agradecer... Um ano! Pensou nas mais inimagináveis situações e nenhuma delas poderia ser melhor do que o presente que vivenciava agora. Só precisava lançar os dados:

- Susan, eu quero agradecer por... – Susan olhou pra ele imediatamente. A expressão indefinível num rosto pálido e incrédulo. Era o que não desejava nunca escutar. Não seria possível ele estar ali só por gratidão.

- Não!

- Susan, você salvou a...

- Não! – Negava com a cabeça. – Não precisa... Não... – Sem conseguir fitá-lo ela caminhava mais rápido. Já ele, fixo ao chão, não conseguia entender o quê havia de errado. – Great! – riu contrariado e correu pra alcançá-la.
O silêncio ecoava no táxi. Susan olhava a cidade em movimento, inerte e apática, com a cabeça apoiada no vidro da janela. As luzes líquidas estavam bem à frente dos seus olhos, mas só enxergava a tempestade que desabava dentro dela. Alheia ao mundo, alerta a si, enfrentava a pior das sensações. Não esperava gratidão. Não que fosse um sentimento prejudicial, mas se não estava ali por ela, para quê veio? Aliás, quanta pretensão... Conhecimento era mais que motivo. Mas o toque quente e macio só a fazia se enganar mais. Sorriu ao sentir a mão dele envolver a sua.

- Susan...

- Sim? – Respondeu sem olhá-lo. A voz fria em contraste com o calor que ele lhe provocava.

- O que há de errado? – Realmente se preocupava.

- Nada. – respondeu, seca.

- Eu seria um canalha se fingisse que nada aconteceu e não agradeces...

- John... – Por fim o encarou. Acariciando a sua mão prosseguiu. – Não quero falar sobre isso. – Era quase uma súplica.

- Tá certo. – Com a outra mão, livre, acariciou o rosto dela. O sorriso de canto e o olhar de admiração a fizeram estremecer. Mas agora não havia cronos ou kairós. John acariciava seu pescoço com as pontas dos dedos. Ela fechou os olhos sentindo-o.

- John... Pára. – Mas seu semblante pedia o contrário. E ele continuou. Caindo em si, ela afastou a mão dele de seu rosto com delicadeza. Animada ela disse:

- Estamos chegando. – Ele assentiu com um meneio de cabeça. – Vai poder tomar um banho quente, comer alguma coisa e descansar. – Esfregou as mãos, sorrindo. – Curte batata recheada?

- Odeio batata. – Franco e incisivo!

Susan gargalhou – Só porque o jantar foi especialmente feito pra você! – Ele gargalhou, também.

- Bom, eu como o recheio, frito um ovo, sei lá... Sem problemas. Acho que chegamos. – Disse ao sentir que o táxi parou. Ambos desceram do carro.

- Bem, este é o meu humilde lar. – Pagou o motorista dom táxi e agradeceu. – É aqui! Seja bem vindo.

- Humilde? – Pensou. Acima do requinte e da crueldade, tratava-se de uma suntuosa construção da era vitoriana. – Interessante... – Tinha um sorriso de admiração no canto da boca. A história lhe instigando e aquela casa parecia ser ainda mais inglesa. Anos de colonização, traduzidas na arquitetura da época, com que comumente se deparava, em Nova York, lhe traziam a certeza de que estava diante de um palácio de beleza única e jamais vista antes. Com a vantagem de ser levado para casa pela própria rainha. A exuberância do jardim o impressionou. Passaria horas ali, contemplando e dedilhando o violão, bem esculpido e macio. Dispersou os pensamentos e passou a observar, detalhadamente, a paisagem com pouca claridade. O efeito de luz e sombra, à noite... No escuro o dia começava pra ele. À parte o detalhe, gostaria de ver cor e perspectiva na luz solar.

Susan o conduziu pela passarela que os levava até a porta principal. John observava atento. O cheiro das árvores acentuado pela umidade do tempo chuvoso reconfortava o músico. Segurando-o pela mão, ela o fez parar. Fez com que se aproximasse dela e com a outra mão pegou uma florzinha. – Queria te mostrar. Chama-se bluebell. É típica aqui da Inglaterra. - John observou a flor com cuidado.

- Linda! – Olhava-a encantado. Mais ainda quando encarou Susan, sorrindo. Puxou a flor, tirando-a do caule e colocou no espaço entre o cabelo e a orelha da garota. – Duas flores. – a fez gargalhar!

- Larga a mão de ser piegas, John! – Ele rui também! – Mas é verdade! Esperava de você cantadas mais criativas! Vem, vamos entrar que está frio! – Puxou-o pela manga do casaco. E assim caminharam lado a lado, conversando animadamente.

Susan abriu a bolsa e procurou pela chave por minutos a fio. – Não acho! Segura o violão. – entregou o instrumento a ele e tornou a procurar. – Não é possível, tem que estar aqui. – John esperava pacientemente até que viu uma saliência no bolso do casado dela. Colocou a mão nesse e achou a chave.

- Depois você critica a minha cantada... – e riram por mais meia hora, ou mais.

Enfim Susan abriu a porta e, com um gesto delicado, convidou John a entrar, acompanhando-o e fechando a porta, logo atrás. Era um corredor luxuoso. Uma porta à esquerda de frente para um espelho. Entre a dúvida e a verdade, a incerteza o conduzia por um caminho às cegas. Talvez o ônus da escolha se revelasse pouco a pouco. Que diferença fazia agora? Abaixo do espelho a imagem bem talhada, de mogno, acrescentava luxo. Mais a frente, à direita, outra porta. Inquestionável e destrancada pra ele, mas não sabia. Mas o tapete das certezas apontava só uma direção, multilateral e mono facetada. A terceira e maior das portas, de frente pra ele. Aquela porta. E a história recomeçava naquele março. Foi caminhando devagar, deslumbrado e inquieto. E dali pra frente...

...Ela, deslumbrada e inquieta, dali pra frente... Dali para trás e sua vida recomeçara. Caminhava estática de si e dinâmica do que poderia vir. Ele ali, à frente dela. A impossibilidade tão carregada de possíveis. Tanta coisa aconteceu sem que sentisse e agora sentindo o que não poderia decifrar. E estava tão escancarado, absurdamente escancarado que se perseguiam. Acaso? Coincidência? Ele estava ali. O coração acelerado, calmo no minuto seguinte vendo-o abrir a porta, tão decidido. Definitivamente aquele março recomeçava.

Chegou a uma sala de enigmas luxuosa.. As paredes em amarelo ouro, e o chão escuro. Estantes brancas de livros obscuros, uma lareira que não aquecia, sobre ela fotos e um relógio impreciso de tempo, Os sofás aveludados e atrás destes, à direita, um raque de bebidas finas. Aquele espaço, provavelmente, se reservava ao raro descanso. À esquerda, outra porta. E dali precisava descobrir aonde iria. Era um labirinto instigante. Susan assistia ao John, escorada no batente da porta, o violão descansando no chão. Sorria aliviada. Verdade que esse pesadelo a maravilhava. Encontrá-lo foi surreal. Esperou tanto por isso, sem ter a menor perspectiva de isso acontecer e ele, enfim, estava ali. Agora que ele tirara o casaco e o colocara sobre a mala que jazia no chão, ela reparou nos ombros, nas costas, na cintura... E se pegou adorando moldá-lo com os olhos. Despi-lo... Corou. Charlotte veio para ajudá-la. Trabalhava para a família há anos.

- Susan. Há quanto tempo chegou? – Perguntou, envergonhada. Deveria estar lá para ajudá-la.

- Questão de minutos, não se preocupe. – Fez uma massagem nas costas dela, fazendo-a rir. – Tá muito tensa. Vai ter um enfarto, se continuar assim!

- É ele? – Falou sem emitir som algum, mas Susan compreendeu pela boa articulação labial e pelo gesto que apontava para John, discretamente. Ele estava tão distraído que nem notou a presença da governanta. – Que gato! – Fez Susan sorrir. Charlotte era uma mulher de 35 anos. Chegou ali jovem, mas trouxe na bagagem garra e determinação. Em busca de um futuro promissor, ela aceitou ser acolhida pelos patrões em troca de atenção aos detalhes daquela família. Sua mãe, cozinheira da casa desde sempre, pediu abrigo à filha, que se encontrava em uma situação difícil. A simpatia pela garota logo se transformou em confiança. Por ali ficou e, sendo o braço direito da família, administrava bem o lar. Formada em direito, em pouco tempo ela ganharia espaço, também, no grupo Hirst. – Senhor? – Caminhou até ele e lhe estendeu a mão, solícita. – Sou Charlotte, governanta da casa.

- Prazer, John. – Sorriu pra ela, cumprimentando-a.

- Coloco-me à disposição para o que precisar. Quer ajuda com as malas?

- Não, obrigado. Estão pesadas. Deixe que eu leve, sim? Seria indelicadeza de minha parte permitir que uma dama se esforce, carregando peso. – Piscou pra ela e sorriu. Susan gargalhou.

- Seria uma honra ajudá-lo. – Respondeu com a inocência na medida do sarcasmo dele.

- Vou poupá-la do esforço, mas agradeço pela gentileza. – Segurou a mão dela e levou-a a boca, beijando-a respeitosamente. Ela riu.

- Es um cavaleiro muito gentil. Raro encontrar, hoje em dia. – Entrou na brincadeira. – Deixe que eu acompanhe até os seus aposentos, sim?

- Sim. Ficaria grato. – Vestiu a mochila, ergueu as malas do chão e seguiu até a porta. Parou hesitante. Com o que mais se depararia? Abriu por fim e deu de cara com um outro corredor. À direita a escada. Charlotte, que se encontrava atrás de John, instruiu-lhe a subir as escadas e dobrar à esquerda. Seria a terceira porta no lado oposto da escada. Abriu a porta, devagar. O sorriso do tamanho da admiração e angústia. Tanto luxo lhe garantiria um lar? Seria hipócrita em refutar tanto conforto? Era amplo, em matizes de creme e vinho. A cama se apoiava a uma parede vermelha, adornada com três grandes luminárias, retângulas e alvas, que ocupavam quase todo o comprimento da parede vermelha. Três de copas, de ângulos retos e sem sangue algum. Iluminavam bem à cama, com regulagem de intensidade, e ao resto do quarto à meia luz. A cama, espaçosa, cobria-se com uma colcha de cetim, de cor creme. Ao lado direito havia um pequeno criado mudo de uma gaveta só. Sobre ela um vaso de vidro e flores exóticas e uma vela em contradição com os painéis luminosos, pois a sua luz sobrevivia viva e bem perceptível. Do outro lado da cama, um outro criado mudo que dava suporte a um abajur. O jogo de luzes e sombras quase sanguíneas começava a lhe agradar. Entre a parede da cama e à da direita, um vão. À direita do intervalo, um gaveteiro abaixo de um quadro e oferecendo suporte a uma pequena estátua, uma janela retangular e alva e, mais adiante, um gaveteiro mais baixo, sob um espelho suspenso. John estava exausto, precisava de um banho para relaxar, após horas e horas de viagem e tempo incerto de reencontro improvável e real. Charlotte o deixou só e se colocou à disposição, precisando de auxilio era só chamar. Contou-lhe, ainda, que no banheiro havia sabonete, desodorante, toalhas brancas e um roupão. À sós, girou em seu próprio eixo, de braços abertos. E retornando ao ponto inicial, deixou que seus braços caíssem de uma vez, fazendo um estrondo quando as mãos se chocaram contra suas coxas. Expressava um sentimento confuso e impossível de definir. Colocou uma das malas sobre a cama, e de lá tirou uma muda de roupa, carregando-a consigo para o banheiro. Adentrando o cômodo, outra surpresa. O chão de azulejo branco, bancada, pia e banheira de mármore, assim como as paredes. O box de vidro verde. O luxo ali não tinha limite? Sem se importar mais com isso, despiu-se e entrou em baixo do chuveiro. Lá achou o sabonete. Ensaboou-se, vagarosamente, revivendo a cena do aeroporto. O coração percutindo em descompasso, ansioso por vê-la. Será que se enganou? Uma calma súbita lhe surpreendeu, quando a viu. Todas as idealizações se desfizeram. Talvez o impacto tenha lhe anestesiado, pois reconheceu nela a imagem da mulher forte e corajosa, num corpo que lhe enlouqueceu. O rosto tão delicado e inocente. Ousada, tomou a iniciativa. O encantara, de fato, mas será que esperava algo mais dela? Esperar o quê? Desconhecida até algumas horas atrás. E talvez ainda fosse. Pegou o xampu e espalhou pelo cabelo, massageando o couro cabeludo. Enxaguou-o, em seguida, a espuma levando a tensão do dia. Fechou os olhos e deixou que a água escorresse, a contradição lhe dominando. O jato bem distribuído, massageava-lhe as costas, e se deixou ficar por ali. Por quanto tempo? Em um instante qualquer notou as rugas nas pontas dos dedos. Fechou o registro, saiu do box, pegando a toalha que usaria para se secar. Depois disso vestiu o roupão e, com uma toalha seca em mãos, saiu para atender as batidas leves na porta, secando o cabelo. Por azar deu de cara com Susan, ao abrir a porta, trajando um vestido que evidenciava bem as suas curvas, e sem alças.

- John? – Ao vê-lo só de toalha, quase perdeu o ar. Admirada, observou-o minuciosamente, inebriada pelo corpo dele. Corou ao notar o sorriso nos lábios dele. Tomou fôlego para prossegui: A-achei que tivesse acontecido algo, mas fico contente em saber que tomou um banho demorado e revigorante O jantar lhe espera. Pedi à Carol que fizesse peixe assado com molho de cogumelo. Sei que não gosta de batatas. Espero você na sala de jantar. – Falou sem um segundo de interrupção, se quer para respirar.

- Ok, agora respira, Susan. – Fez com que ficasse de costas para ele e passou a massagear seus ombros, devagar. Parou ao senti-la totalmente entregue à carícia. Sorriu satisfeito. – Num instante desço. Obrigado por se preocupar. Note que estou vivo e inteiro. – Susan riu. Aos poucos foi notando que ela relaxava. – Vou me trocar e desço.

- Ok! Estamos te esperando. – E a viu se distanciar.

Em poucos minutos estava vestido. Calça jeans, camiseta do ACDC e tênis. O cabelo molhado. Levou um pouco mais que a eternidade tentando encontrar a sala de jantar naquele labirinto. Ouviu vozes vindo de uma porta entreaberta e supus ser o lugar que procurava. Abriu-a um pouco mais e entrou no cômodo. Era uma sala tão luxuosa quanto a primeira. Semelhante em estrutura e ainda mais rica de detalhes. A mesa, de madeira nobre e em forma ovalada, ficava no centro, abaixo de um lustre de ouro e cristal. Visto da perspectiva de John, à esquerda da mesa, havia uma lareira que dava suporte à quatro castiçais de uma só vela e um pote de porcelana. Acima da lareira ficava um espelho. John fixou os olhos no objeto, pensando que sua imagem se refletia diferente em cada um dos espelhos que viu desde que chegara ali. Continuou a observar. Ao lado da lareira havia uma porta menor e mais escura que as demais que rondavam o ambiente. Tinha como um empecilho um castiçal grande de quatro velas. Ao lado deste castiçal, um outro, igual ao primeiro. Engraçado, haver entre eles uma luminária. Era de cristal, mas não brilhava, e sua luz era ofuscada pela das chamas que queimavam, ali. Que pareciam arder dentro dele. Ao fundo, de frente para John, havia um rack, semelhante ao da sala principal, mas nele não havia bebidas. A mesma madeira da mesa. Os detalhes combinavam harmoniosamente, mas angústia desamornizando dentro de John. Até aquele momento não questionara vez alguma o que viera fazer ali. Queria vê-la novamente. Só ele sabia o quanto esperou por isso. Dedicou um ano inteiro de sua vida a um projeto que o levaria para Cambridge, com uma finalidade dúbia. Mas dividir sua vida com alguém que mal conhecia... Colocara uma expectativa grande sobre o reencontro, e agora se encontrava em um lugar que talvez não pudesse chamar de lar. Muita pompa, mas não se sentira acolhido. Talvez fosse crítico demais. Pobre Susan... não sabia o quanto aquela surpresa devolveu a ela um ano de felicidade perdida. O fato é que, reparando melhor, não sabe se os olhos ali o mediam ou o recebiam calorosamente. Os dois? Nenhum deles? Na dúvida do que fazer permaneceu calado, mas sorriu timidamente. Foi retribuído.

- Então você é o famoso John? – Perguntou Daniel, numa tentativa de ser simpático.

- Sim, sou John. Mas não sabia que competia com tantos outros Johns, mais famosos do que eu. Fico lisonjeado. – Causou risos.

- Olha, se depender da Susan você já é uma celebridade mundialmente conhecida. – Sara se manifestou e foi repreendia com um “Mãe!” bem enfático e sonoro.

- Ah! É? – John perguntou, com uma das sobrancelhas erguida e um sorriso de canto e ironia que a fez corar. – Andou falando mal de mim? – Piscou para Sarah e seu sorriso maroto só se enlanguescia.

- Não! – Respondeu aflita. Não. Eu falava sobre você, digo, sobre a sua chegada no aeroporto sobre...

- Sobre o quanto é amável e... – Sarah se divertia ao ver o desespero estampado no rosto da filha. John compartilhava da brincadeira, sorrindo e deixando Susan ainda mais embaraçada. Estava mesmo era curioso pra saber o que falara dele e adorando perceber o quanto mexia com ela.

- Inteligente, educado, bonitão... – Daniel resolveu participar do jogo também. O rosto de Susan era quase uma fogueira. O que John pensaria dela? Verdade que achava dele todas essas coisas e alguma mais, mas não poderia admitir. Não na frente dele. Mas seu rosto a acusava. Enfim, precisava acabar com aquela conversa, mas antes que pudesse abrir a boca, Daniel continuou. – E olha que ela detesta nova iorquinos... – Reticente. Onde Daniel desejava chegar com aquele comentário. À parte a intenção, fazia pouca idéia do comentário infeliz que proferira há minutos. Sim, minutos. A cara de Susan fechou, assim como o tempo lá fora. A Tempestade começava a cair também naquela sala de jantar. Não, não estava incrédula. Era bem típico de Daniel, irritantemente previsível. E John? Não deveria se preocupar com isso, mas era mais forte que ela. O que dissera no aeroporto ficou gravado na memória dela. O que poderia ter sido ima ironia de mal gosto poderia se transformar numa certeza. Mas a raiva que a dominava só pioraria a situação.

- Não! Não gosto. Principalmente dos arrogantes e prepotentes. Mas estes têm em todo lugar – O tom baixo, encarando o pai nos olhos. Claramente o desafiava.

- Concordo! Tenho o exemplo vivo bem abaixo do meu teto. – O que queria dizer com aquilo? Então era nestes termos? Pois bem! Ela jogaria de igual para igual.

- Imagino o quanto seja difícil pra você se suportar. Engolir a própria covardia. Acredito que desconheça a sensação de ser recompensado pelas próprias escolhas. E não se engrandecer rezando a cartilha dos outros. Ter o que é seu e não é, ao mesmo tempo. – A ferida era maior do que seu orgulho suportava. Teria de engoli-lo? Jamais admitiria o quanto Susan poderia estar certa. Impondo o limite ele replicou:

- Cale-se já! Meça as palavras para falar comigo! Ainda sou seu pai. – gritava quase sem controle.

- Me questiono sobre isso todos os dias! – Sentindo os olhos arderem ela deixou a sala.

- Susan, exijo que volte! Volta aqui, Susan! – Gritou em vão. Vendo-a sumir, não sabia se magoara ou foi magoado. E aquela cena lamentável diante do rapaz que nada tinha a ver com isso. – Desculpe John, por presenciar essa cena tão desagradável. Bem, sou Daniel. Esta é minha esposa, Sarah. – Indicou-a.

- Prazer, querido. – Sarah, que até então estava sem ação, saiu do estado de inércia, mas logo se calou. Quando esta guerra acabaria? Sentia-se impotente, culpada, arrasada. Por mais que interferisse não conseguia apaziguar.

- O prazer é todo meu! E não se preocupem, isso acontece. Não é a primeira e nem a última vez. Daqui a pouco vocês se entendem. – Sorriu. As palavras eram de conforto, mas internamente ele estava bem desconfortável. Decepcionado, na verdade. Ela tinha um gênio bem difícil de lidar, não media as palavras. Jurava ter visto nela uma Susan doce. Por outro lado, as últimas palavras que ela dissera ecoavam na sua cabeça. Viu em seu rosto o sofrimento. Então ela se sentia sem pai? Ah! Se ela soubesse o que é não ter um. Daria de tudo para ter conhecido o seu. Era inadmissível que Susan tratasse Daniel daquela maneira. Mas o certo é que não podia julgá-la. Susan devia ter os seus motivos.

- Posso servir o jantar, Senhor? – Carol, que assistia à cena num cantinho, perguntou encabulada.

- Pode. O patrão respondeu amável, como sempre...

O jantar ocorreu sem mais conflitos. Mas um clima tenso pairava. John começava a se preocupar com Susan, que nem apareceu pra jantar. Daniel começava a questionar sobre a necessidade daquele comentário. E, bem, o pensamento de Sarah estava vazio. Comia mecanicamente. Frustração, culpa, um passado que a atormentava. E Susan enxugava o rosto. Não derramaria uma só lágrima. Foi-se a última. Tinha certeza da sua escolha e nada a abalaria. Precisava jantar, mas não tinha fome. Não queria encontrar o pai. Bem, era tarde da noite, mas não tinha sono. Resolveu ir até a sala principal, buscar um livro ou ver a noite, da janela. Desceu as escadas lentamente, para não fazer barulho. Estava descalça e trajava uma camisola de seda, rendada na altura do colo. Chegou à sala e encostou-se no batente da porta, observando-o. Ele dedilhava o violão e cantava baixo. Sua voz era suave e macia. Deixou-se levar pela melodia. De olhos fechados ela escuta a canção. Abriu os olhos e reparou nele. Usava uma bermuda e tudo aquilo o que a camiseta escondia estava à mostra. Desenhou-o com os olhos, como fizera horas atrás, mas sem camisa era mais interessante. Dispersou os pensamentos e se aproximou dele. Tocou seu ombro, de leve, e ela parou imediatamente o que fazia e a encarou no fundo dos olhos. Tinha a expressa suave. Parecia preocupado. Admirou-a por alguns tempo e, por fim, disse:

- Você saiu da mesa aquela hora... ta tudo bem? – Ela negou com a cabeça e fitou o chão. – Quer conversar?

- Teria tanto o que dizer. Desculpe. Você não merecia aquilo. Mal chegou e já presenciou uma briga. – Sentia-se um pouco envergonhada.

- Não faz mal. Só acho que não devia se indispor com o seu pai. – a fez rir de indignação. – Não faz bem pra nenhum dos dois.

- Eu sei, John, mas o problema é mais grave do que você imagina. Conflito houve sempre e há de haver por muito tempo.

- Por quê? – Logo se arrependeu da pergunta.

- Olha, o meu pai é um cara admirável. Sei que, depois do que disse à mesa, pareço hipócrita. Mas admiro-o muito. Foi um cara que lutou muito na vida pra chegar onde está hoje. Sei que se preocupa muito com o meu futuro. Mas as minhas escolhas são diferentes das dele. Eu só queria que ele entendesse. – Parecia, realmente, triste. – Bem, você tocava uma música linda. Canta muito bem. – sorriu, por fim.

- Obrigado. – Sorriu de volta. – Eu venho me dedicando à música há alguns anos, mas tenho muito que aprender ainda. – Fitou o violão e riu sereno. – è uma música que eu fiz. Não tem nome. Nasceu de um improviso. Fico feliz que tenha gostado e espero que esteja se sentindo melhor.

- Estou sim... Obrigada por me ouvir. – Agradeceu, e a feição tímida agradava ao John. Ele contemplava o rosto dela, fitava os seus lábios. Num gesto inesperado, colocou de lado o violão, levantou do chão, sentou-se no sofá e puxou-a pelos ombros, abraçando-a, logo em seguida. Como queriam isso. Susan se deixou envolver e apoiou a cabeça no ombro dele. Sentia-se protegida. Ela a aconchegava mais em seus braços. Um deles permanecia em volta dela. Com a mão do braço que estava livre, acariciava os cabelos de Susan. Inusitadamente, beijou-lhe um dos ombros, fazendo-a suspirar. Ele sorriu de canto. Ela gostara tanto quanto ele. Por fim, soltou-a aos poucos e a olhou. Susan tocou o seu rosto, fazendo-o sorrir. Em seguida, segurou a mão dele, levando-a à boca e beijou-a com carinho.

- Boa noite, John. – Ainda segurando a mão dele, levantou-se do sofá.

- Boa noite, Susan. – Surpreso com o gesto, mal conseguiu responder. Lamentou por ela lhe soltar a mão e a viu deixar a sala. Linda e esculturalmente modelada pela seda que lhe cobria o corpo. Levantou do sofá, vagarosamente, tomou o instrumento nas mãos e enfim, saiu da sala.

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